21 de mai. de 2011

O lado escuro da comida

por Claudia Carmello, Barbara Axt, Eduardo Sklarz e Alexandre Versignassi

Frango. Água. Maisena modificada. Soda para cozimento. Sal. Glicose. Ácido cítrico. Caldo de galinha. Fosfato de sódio. Antiespumante dimetilpolissiloxano. Óleo hidrogenado de soja com antioxidante TBHQ. Isso agregado a mais 26 ingredientes é o que conhecemos pelo nome de nugget. A receita é produto de um sistema que faz de lasanha congelada a tomates mais ou menos do mesmo jeito que se fabricam canetas, ventiladores ou motos. É a agropecuária industrial. Ela começa nos combustíveis fósseis. Petróleo carvão ou, mais comum hoje, gás natural são a matéria-prima dos fertilizantes. E os fertilizantes são a matéria-prima de tudo o que você come hoje, seja alface, seja dois hambúrgueres, alface, queijo e molho especial - no pão com gergelim.

Verdade - Fertilizante mata
Mata peixes, não pes-soas. Mas mata. Resíduos de fertilizante vão parar em rios, e daí para o mar. Lá eles fertilizam algas e elas crescem. Mas isso não é bom: quando elas morrem, sua decomposição rouba oxigênio da água. E os peixes sufocam. São as chamadas zonas mortas. Existem quase 400 delas nos mares.

Sem eles para anabolizar as plantações, não haveria comida para todo mundo. O problema é que, com eles, podemos ficar sem mundo. "Na porteira da fazenda, ainda antes do uso, um saco de 100 quilos de fertilizante químico já emitiu 4 vezes esse peso em CO2 para ser fabricado. Depois que aplicam no solo, pelo menos 1 quilo daquele nitrogênio (elemento principal do fertilizante) é liberado para o ar em forma de óxido nitroso, um gás quase 300 vezes pior para o aquecimento global do que o CO2", diz o agrônomo Segundo Urquiaga, da Embrapa. Nessa toada, a agropecuária consegue emitir sozinha 33% dos gases-estufa do mundo, mais do que todos os carros, trens, navios e aviões juntos, que somam 14%.

Além disso, os fertilizantes deixam resíduos debaixo da terra que chegam aos lençóis freáticos e acabam no mar. Mas isso é pouco comparado ao que a comida moderna pode fazer ao seu corpo. Voltemos ao nugget.

VOCÊ É FEITO DE MILHO E SOJA
Os empanados de frango são um dos ícones da indústria de alimentos, baseada, como qualquer outra, em mecanização, uniformização, produtividade. Essas exigências levam a um fato curioso: há quase 40 ingredientes diferentes em um nugget, mas 56% dele é milho.

A maisena é farinha de amido de milho - o ácido cítrico, a dextrose, a lecitina, tudo é feito com moléculas desse grão. Ou com grãos de soja, dependendo do que estiver mais em conta no mercado de commodities agrícolas (pensando bem, até a galinha é feita de milho e soja - é isso que ela come de ração. Metade da área plantada no Brasil é dominada pela soja, que aparece em 70% dos alimentos processados. E um terço das plantações americanas são lavouras de milho Isso acontece porque soja e milho produzem mais calorias que a maioria das plantas; são resistentes ao transporte e a anos de estocagem, entre outras vantagens competitivas.

Mas qual é o problema de chegar a essa variedade de comida com apenas dois grãos? Os bois podem dar uma primeira resposta.

No mundo desenvolvido, praticamente toda a carne sai das fazendas de confinamento - galpões onde os bois passam a vida praticamente empilhados uns nos outros, só engordando. Nesses galpões, a comida do boi não é capim, mas ração à base de milho e soja. O inconveniente é que ele não come grãos. Industrialmente falando, um boi é uma máquina que transforma celulose de capim (algo que o nosso organismo não digere) em proteína comestível - a carne dele. Mas capim é bem menos calórico que milho e soja. Para ele crescer rápido e ir logo para o corte, tem que ser ração mesmo. Só que o metabolismo do bicho pena para processar tanta comida indigesta. A fermentação dos grãos no sistema digestivo dele pode causar um inchaço do rúmen (o estômago do boi) que pressiona os pulmões e pode matar o animal. Para combater isso, os criadores enchem os bois de antibiótico: 70% dos antimicrobiais usados nos EUA são misturados às rações de animais. O problema é que isso cria superbactérias resistentes a antibióticos. É Darwin em ação: os antibióticos nem sempre matam todas as bactérias. Às vezes sobram algumas que, por mutação genética, nasceram imunes ao remédio. Sem a concorrência de outras bactérias, elas se reproduzem à vontade. Nasce uma cepa de micro-organismo mais resistente a qualquer antibiótico. Ela podem ser letal. Ainda mais se for parar na prateleira do supermercado.

Foi o que aconteceu com uma variedade agressiva de Escherichia coli. Em 2001, o garoto americano Kevin Kowalcyk, de 2 anos de idade, comeu um hambúrguer contaminado por essa bactéria e morreu 12 dias depois. O caso produziu algo inusitado: um recall de hambúrguer.

No Brasil isso não é um problema. Só 6% do nosso abate vem de confinamentos, contra 99% nos EUA. Aqui os bois ficam soltos. Bom para eles, pior para as bactérias. Mas pior também para as florestas. Nossos pastos são formados à custa de desmatamento da Amazônia e do cerrado. E isso leva o Brasil ao posto de 5º maior emissor de CO2 do mundo. Quase 52% dos nossos gases-estufa vêm do desmatamento. Para frear isso de forma realista (porque parar de criar bois e de exportar carne não tem nada de realista), a solução é o confinamento. Só que essa modalidade de criação também não é a panaceia para o ambiente. Os galpões de gado causam tantos impactos quanto uma cidade grande: lixo, esgoto, rios poluídos... Até mais, na verdade. Só os animais confinados que existem hoje nos EUA produzem 130 vezes mais dejetos do que todos os americanos juntos.

Todo esse cocô vai para grandes lagos de esterco, que servem de parque aquático para bactérias: elas podem passar desses lagos para o solo de uma lavoura. Podem e conseguem. Só de recalls de vegetais contaminados por E. coli já foram 20 na última década nos EUA. Em 2009, um surto de salmonela matou 8 pessoas e adoeceu 600 por lá. Grave. Mas não deixam de ser casos isolados. O maior problema da comida hoje é outro: o fator Roberto Carlos.

IMORAL E ENGORDA
O Rei estava certo quando disse que tudo o que ele gosta é imoral, ilegal ou engorda. Comida gostosa, mas gostosa mesmo, viciante, só é boa porque é calórica - os aspargos que nos perdoem, mas gordura e açúcar são fundamentais. Não para a saúde, mas para o cérebro. Ele gosta mesmo é de porcaria. Nosso cérebro nos recompensa com doses de dopamina cada vez que comemos algo bem calórico, energético. É que no passado isso era questão de sobrevivência - havia pouca comida disponível, então quanto mais calórica ela fosse, melhor. A massa cinzenta dá essa mesma recompensa dopamínica depois do sexo ou de drogas pesadas. Por isso mesmo basta experimentar qualquer uma dessas coisas uma única vez para ter vontade de repetir. Com comidas energéticas, recheadas de carboidratos ou gorduras, não é diferente, você sabe. É impossível comer um só.
Mito - Frango com hormônio
Uma das lendas mais persistentes é a de que o frango é entupido de hormônios. E que esse hormônio pode ser letal para nós. Não. Não rola hormônio. "O segredo para o frango crescer tão rápido está na genética", diz o engenheiro agrônomo Gerson Neudí Cheuermann, da Embrapa. A fórmula da ração do frango não é segredo: além de milho, soja e minerais, entram aminoácidos produzidos em laboratório (metionina e lisina), que servem de fato para bombar o galináceo, mas não fazem mal para quem come.

E a indústria dos alimentos se formou justamente em torno das comidas que mais liberam dopamina. Isso começou no final do século 19, com o início da produção em massa de açúcar e farinha de trigo refinada. Refinar uma planta significa estirpá-la de suas fibras, proteínas, minerais e deixar só o que interessa (pelo menos do ponto de vista do cérebro): carboidrato puro, energia hiperconcentrada. Depois vieram conservantes mais potentes (como o antiespumante e o antioxidante lá do nugget) e o processamento artificial, com máquinas que transformam carcaças de bichos e um monte de subprodutos de milho e de soja em coisas bonitas e de sabor viciante. Começava a era da comida industrializada. A nossa era.

E a produção de alimentos nunca mais seria a mesma. O cérebro do consumidor guia a indústria dos alimentos. Esse cérebro prefere comida turbinada por açúcar e gordura, certo? Então a seleção natural age de novo, mas dessa vez no mercado: só sobrevive quem produz comida mais gostosa. E a mais gostosa é a gorda (olha o Robertão aí de novo!). Natural, então, que o mercado de comida processada acabasse dominado por bombas calóricas. Nosso amigo nugget, por exemplo, recebe doses extras de gordura (óleo hidrogenado de soja) e também de açúcar (a glicose). Mais do que alimentar, a função dele é dar prazer.

Mas é um prazer que pode custar caro. Um "suco natural" industrializado, por exemplo, pode ter até duas colheres de açúcar para cada 200 mililitros. Nosso corpo não é adaptado para suportar doses cavalares como essa o tempo todo. A produção de insulina, por exemplo, pode sobrecarregar e dar pau - e sem esse hormônio, que gerencia o processamento de acúcar no organismo, você se torna diabético.

Nos EUA, 1 em cada 10 adultos tem diabetes - duas vezes mais do que em 1995. E a perspectiva é que essa proporção triplique nas próximas décadas, agora que 1,6 milhão de novos casos são diagnosticados por ano. Para completar, 70% da população é considerada acima do peso. E nós aqui no Brasil estamos indo por esse caminho. Quanto mais a economia cresce, maior fica a nossa cintura. No meio dos anos 70, quando o IBGE mediu pela primeira vez o peso da população, 24% dos brasileiros estavam acima do peso. Hoje são 50%.

O aumento de peso pode ser o resultado mais visível de uma dieta inadequada. Mas quem está na parcela sem pneuzinhos da população também corre riscos. Principalmente por causa de outro ingrediente-chefe da comida industrializada: o sal. "A maior parte do sal que a gente consome não está nos saleiros, mas nos alimentos processados" diz Michael Klag, diretor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade John Hopkins, nos EUA. O sal é adicionado para ajudar a preservar o produto e, principalmente, reforçar o sabor. E ele acaba onde você menos espera. Está nos cereais de café da manhã e até nos achocolatados - para deixar o chocolate menos enjoativo.

A Organização Mundial da Saúde recomenda o consumo de, no máximo, 6 gramas de sal por dia para evitar pressão alta - e as doenças que ela causa. Os brasileiros comem o dobro disso. De acordo com a Ação Mundial pelo Sal e pela Saúde, uma organização que reúne membros em 81 países para tentar diminuir o consumo global de sal, se a população mundial comesse apenas os tais 6 gramas de sal por dia, haveria 24% menos casos de ataques cardíacos pelo mundo e 18% menos derrames.